Ana Arrebentinha tem 32 anos e o humor e o Alentejo escritos na pele. Fazer rir os outros tornou-se uma paixão desde criança e os pequenos palcos da Amareleja, onde nasceu, deram a vez aos maiores, um pouco por todo o país.
A Ana Cristina tornou-se na Ana Arrebentinha, um nome difícil de esquecer e herdado do seu pai, "um grande contador de histórias e anedotas" e umas das suas grandes inspirações para começar esta profissão.
Em digressão com a sua tour 'Não estavas capaz não vinhas', que vai passar pelo Casino de Chaves já no próximo dia 13 de setembro, um espetáculo gratuito, falámos com a artista sobre as raízes do Alentejo, o percurso pelo mundo do espetáculo e ainda os desejos para o futuro.
© Instagram - Ana Arrebentinha
Como é que começou a sua paixão pelo humor?
Surgiu através do meu pai, que era um grande contador de anedotas e de histórias. Fascinava-me como é que uma história agarrava as pessoas, como é que uma história completamente absurda, em que a maior parte das anedotas não são reais e a história não é real, faz rir as pessoas. Ficava fascinada a ouvi-lo. E depois nós, alentejanos, gostamos muito de estar à mesa, a comer e a contar histórias, isso está mesmo dentro de nós. Acho que o gosto pela comédia e fazer rir nasce connosco.
No Alentejo há muita coisa que tem particularmente graça?
Na minha terra, por exemplo, cada pessoa tem uma alcunha. E depois, não chamamos anedotas ou histórias, nós dizemos 'Vou-te contar uma parte'. Tal como o cante alentejano que foi criado nos campos, na altura do trabalho, as histórias e anedotas também. Temos muito esta cultura, que acho que vem desses antepassados de as pessoas passarem muito tempo todas juntas e então tinham de se entreter com alguma coisa.
O alentejano tem outra particularidade de que eu gosto muito. Nós gozamos connosco.
Mas o percurso da Ana começou quando ia para a porta do centro de saúde contar anedotas a quem estava à espera da sua vez...
Sim, foi o meu primeiro palco. Levantava-me às 6 da manhã, ia para a porta do centro de saúde contar as minhas histórias e as minhas anedotas. Era muito loirinha e pequenina, contava as anedotas muito depressa e as pessoas achavam muita piada.
Foi aí que eu comecei a perceber que começava a ter alguma atenção das pessoas.
A primeira vez que entrei num estúdio de televisão percebi que a minha vida ia passar por ser artista
Como é que foi o seu percurso até ao primeiro espetáculo mais a sério?
O meu sonho sempre foi ser professora de Educação Física. Fui até para o secundário para o agrupamento de desporto só que este bichinho de contar as histórias e as anedotas estava dentro de mim.
Fiz um espetáculo que revertia a favor dos Bombeiros de Moura e estava lá a rádio Planície, que me convidou para gravar algumas anedotas para passarem um programa.
[Mais tarde] Fui fazer um espetáculo num bar e na altura ninguém prestou atenção àquilo que eu estava a fazer. Pouca gente estava a olhar para mim. Isso irritou-me de tal maneira que, em vez de desistir, cheguei a casa e escrevi um e-mail para o programa da Conceição Lino, o 'Boa Tarde'.
Passados uns dias chamaram-me para ir ao programa. A primeira vez que entrei num estúdio de televisão percebi que a minha vida não ia passar pelo desporto mas sim por ser artista.
Depois disto as pessoas começaram-me a chamar para festas. Fui estudar teatro para me formar como artista e ter ferramentas em palco para construir a minha carreira e os meus espetáculos. Havia qualquer coisa em mim que dizia para eu continuar que alguma coisa iria acontecer.
Espetáculo 'Não estavas capaz não vinhas' © Instagram - Ana Arrebentinha
Há alguém no humor que goste particularmente e que a inspire?
Hoje em dia temos uma grande geração de humoristas, homens e mulheres, mas eu sou muito da base da velha guarda. A Marina Mota, obviamente, com o 'Ora Bolas Marina', o Herman José, víamos muito o Herman em casa quando era miúda.
A Maria Rueff era uma das minhas inspirações. É como a Marina Mota, são duas atrizes completas e hoje sou muito amiga dela.
Também aprendi muita coisa com a velha guarda. Por exemplo, a roupa que eu utilizo na rua quando vou jantar antes dos espetáculos, nunca é a roupa que eu levo para cima do palco. As pessoas têm dee te ver bem vestida, acho que isso está na magia entre o público e o artista.
A Ana sente-se nervosa quando está ao lado ou quando vai trabalhar com as pessoas que sempre admirou?
Sim, sinto. Eles já passaram por tantas gravações, tantos espetáculos, já viram tantas atrizes e tantos atores que ficas sempre a pensar sobre o que vão achar de ti. Sinto-me orgulhosa e nervosa.
Se tirasse este sotaque deixava de ser eu e de ser a filha do Zé Mário e da Fátima
O Alentejo faz parte da sua identidade. Alguma vez lhe disseram ou sentiu necessidade de minimizar o sotaque?
Não me fazia sentido fazer isso. O que me caracteriza e que me diferencia de outros artistas é mesmo este sotaque de trazer as histórias e as vivências do Alentejo. Eu fui criada no campo, muita gente se identifica com isso, a minha família tem origens muito humildes de trabalhadores, ali é a minha base.
Ali é que eu me sinto a Ana Cristina, que é o meu nome verdadeiro. Cada vez que vou lá há sempre uma história para me contarem, há sempre alguém, há sempre alguma coisa nova a acontecer.
Obviamente não agradamos a todos mas faço questão de trazer este orgulho. Por exemplo, a Tânia Ribas de Oliveira, que é a minha madrinha da televisão, disse para eu nunca tirar este sotaque. Este sotaque é que vai diferenciar dos outros. Se tirasse o meu sotaque deixava de ser eu e de ser a filha do Zé Mário e da Fátima.
O mundo do humor em Portugal é ainda dominado pelos homens. Alguma vez sentiu resistência por isso?
Não, muito pelo contrário. Comecei muito nova, e senti-me sempre 'a miúda deles'. Uma das pessoas que me acolheu sempre e que eu tenho muito a agradecer, é o Fernando Rocha e o Serafim, de quem eu ia fazer a abertura dos espetáculos. O Pedro Alves e o João Paulo Rodrigues faziam o mesmo. Só tenho a agradecer, ensinaram-me muito. Há um grande acolhimento da parte deles e isso é muito bom.
No que é que a Ana se inspirou para fazer este espetáculo?
Neste espetáculo inspirei-me nos anos 90. Nós vivemos coisas muito engraçadas na televisão, não havia o andar para trás na 'box'. Por exemplo, quando dava os 'Morangos com Açúcar', nós estávamos àquela hora em frente à televisão e se perdíamos um episódio ficávamos chateados.
Nós queríamos ir todos comprar os 'tazos' que saíam nas batatas fritas, os fios das revistas, os posters colados nas paredes. Este espetáculo é muito baseado na primeira parte dos anos 90, o que se passava na televisão. Falo sobre a escola nos anos 90, sobre aquele leite que nos davam, aquele pacote de leite que já vinha azedo da fábrica.
O espetáculo todo é sobre mim, tudo o que passei no Alentejo.
Espetáculo 'Não estavas capaz não vinhas' © Instagram - Ana Arrebentinha
A Ana sente que para fazer humor nos dias de hoje é preciso mais cautela? Tem de se 'policiar' de alguma forma antes de escrever alguma piada?
Em geral sim, nós, mais do que nunca, estamos mais debaixo do olho do que estaríamos há algum tempo. O limite do humor está no bom senso de quem faz e de quem ouve. Gosto muito de fazer comédia para as pessoas esquecerem da vida delas.
A minha comédia é mais de observação, mais interventiva, mais política, só ouve quem quer. Obviamente estamos debaixo de olho. As redes sociais são muito cruéis, qualquer coisa que digas fora do contexto, és logo escrutinado ali.
Isto está no bom senso de cada um. Eu tento adaptar, tento que as pessoas que me vão ver se sintam bem.
Qual é que é o objetivo profissional da Ana?
Estou muito focada na minha vida profissional como comediante, cada ano que passo quero fazer um espetáculo diferente e de correr os mesmos sítios e já tenho alguns convites para o novo espetáculo que ando a escrever.
A minha formação é teatro, sou atriz, fiz um filme e adorei. Obviamente gostaria de passar pelas salas de cinema, gostava de passar novamente também pela televisão mas o palco preenche-me a mil por cento. Assumir a minha homossexualidade foi muito orgânico. Fi-lo por mim, para mostrar normalidade
A Ana também teve um papel de destaque como comentadora do 'Big Brother'. É uma coisa que guarda com carinho, gostava de voltar?
Guardo com muito carinho. Tenho a noção de que este público que me acompanha hoje em dia me conheceu a partir daí. Aprendi muito, é muito difícil comentar um jogo, comentar pessoas que nós nunca vimos de lado nenhum, gerir o nosso comentário e as pessoas que estão cá fora.
Nem sempre corre bem, a nossa observação pode não calhar com aquilo que a pessoa é na realidade, mas dá-nos poder de observação de argumentação.
Cresci muito como artista e como pessoa. A TVI é a minha casa do coração, onde fui muito feliz. Houve uma altura em que eu pensei que tinha de voar. A TVI foi a minha mãe e depois eu tive de voar sozinha e ir à minha vida como comediante. Obviamente tenho muitas saudades e não digo que nunca vou voltar.
15 dias depois de a minha mãe falecer eu estava a fazer rir os outros e foi o espetáculo mais especial da minha vida
Passando para uma parte mais pessoal, a Ana assumiu publicamente a sua homossexualidade. Sentiu que foi um passo que tinha de dar ou foi algo orgânico, que simplesmente aconteceu?
Foi muito orgânico, foi uma entrevista com a Tânia Ribas de Oliveira. Quando ela me convidou para uma entrevista, foi questionado na altura se a minha mãe sabia e se havia algum problema em abordar o assunto. E eu disse que não.
Foi uma coisa muito orgânica e fi-lo principalmente por mim. Quero mostrar a normalidade com que se diz 'tenho um marido' e a normalidade com que se diz 'tenho uma mulher'. Quero mostrar normalidade, mas não me posso esquecer das pessoas que sofrem da homofobia, dos países em que ser homossexual dá pena de morte, das pessoas que são maltratadas, não posso esquecer disso.
Tive esta opção de o fazer, por mim, pela minha libertação, porque quando alguém me questionava sobre se eu estava com alguém, eu sentia que não estava a ser verdadeira comigo nem com as pessoas que me acompanhavam.
Senti que tinha de o fazer. Todas as mensagens que eu recebi foram boas, de pais, de avós, de pessoas mais velhas e mais novas a agradecer pelos filhos e filhas que passavam pelo mesmo.
O que não é normal é a homofobia. Eu não quero saber se o outro está com uma mulher, se tem três mulheres, se tem quatro mulheres, se só tem um homem. Isto é a vida de cada um. E a vida de cada um não interfere na vida do outro.
Normal para mim é viver uma vida real. A minha família aceitou como se fosse um homem. Não houve nenhuma questão, a minha mãe aceitou.
Foi também público que a Ana perdeu os seus pais. Como é que tem sido lidar com o luto numa idade tão jovem? O humor tem ajudado?
O humor salva. Este ano e o ano passado quem me salvou foram as pessoas que me foram ver, que gargalharam com o meu espetáculo. 15 dias depois de a minha mãe falecer eu estava a fazer rir os outros e foi o espetáculo mais especial da minha vida. Senti uma força que nem consigo explicar, que me manteve de pé. Eu também não sei quantas pessoas que estão aqui na sala já não têm pai nem mãe.
Nunca vamos estar preparados para perder um pai e uma mãe. Senti-me abraçada naquele momento pelas pessoas que seguem o meu trabalho. Entreguei-me muito à comédia. Obviamente que procurei terapia.
Houve aqui uma noção de que não estava bem emocionalmente, precisava das pessoas para trabalhar, para me aconchegarem. Tive pessoas que vieram ter comigo, que ainda me abraçam e ainda me dizem que estão ali e que me podem ajudar se eu precisar.
Isso é muito bonito. No ano passado estava a trabalhar na festa da minha terra e uma senhora trouxe-me um bolo. 'Sei que você já não tem uma mãe para lhe fazer um bolo, eu trago-lhe um bolo', disse-me. Isso é das coisas mais maravilhosas do mundo, então o humor salva. E as pessoas também nos salvam a nós.
O humor foi e continua a ser a melhor forma de ultrapassar tudo isto e, às vezes, já consigo 'brincar' um bocadinho com o tema, aliviar um bocadinho a situação.
Leia Também: "Ninguém está preparado para ver a mãe acamada e de fraldas"