A exposição, de entrada gratuita e patente até janeiro do próximo ano, reúne várias das criações iconográficas de Cattelan - tido como um polemicista e tornado famoso mundialmente pela banana com fita-cola que mostrou em 2019 -, apresentadas em Portugal pela primeira vez, numa mostra concebida especificamente para a Casa e o Parque de Serralves.
"Escolhemos uma seleção estrita de obras que, para mim, são o núcleo do seu trabalho. Este foi o objetivo. Ele é um jogral da corte, não um palhaço, e é o único com o poder de dizer a verdade ao poder. Este é um aspeto muito importante do que faz e do mundo da arte no geral", disse à Lusa o diretor do Museu e curador da exposição, Philippe Vergne.
Vergne apontou Cattalan como um personagem de si mesmo, inspirado que é no teatro e na tradição italiana da 'commedia dell'arte', mas o artista, um "jogral" que se "ri quando nós choramos e chora quando nos rimos", não marcou presença na visita.
Sem o artista presente, foi o curador, que há mais de uma década pretendia apresentar uma coleção de obras do italiano nascido em Pádua em 1960, a guiar os jornalistas por 26 obras que se focam sobretudo nos temas da História, fascismo, religião, a obsessão com iconografia, o teatro, a morte e o autorretrato.
Um cacho de bananas pousado numa mesa de trabalho, durante os últimos ajustes do Serviço de Exposições antes da visita destinada à comunicação social, ia roubando a atenção antes do início do percurso, liderado por Philippe Vergne, ladeadas por capas, produtos de limpeza, fichas triplas, um garrafão de água e fita-cola.
O curador da exposição conversa com jornalistas sobre o foco de Cattelan no fascismo, a começar por "Novecento" (1997), um cavalo suspenso no ar e cujo corpo está derrotado pelo peso da História (tornando inevitável a associação ao filme homónimo de Bertolucci), questionando-se, depois, por onde orientar a visita -- acaba por se decidir pela sala onde está "Sem título" (1997), uma avestruz de cabeça enfiada no chão, visão auto-explicatória dos dias de hoje.
O fascínio com a religião atravessa várias obras, de uma redução da Capela Sistina, de 2018, feita a um tamanho pequeno para reequilibrar a relação do humano com o divino, numa sala em que não cabia sequer toda a gente presente na visita, ao famoso "La Nona Ora" (1999), com o papa João Paulo II atingido por um meteorito, um dos mais reconhecidos trabalhos do artista.
"Jorge" é um sem-abrigo à entrada da capela, onde outra obra dialoga com o tema da religião, tem vista de quem passa na rua, ecoando uma cena vista em dezenas de locais pela cidade do Porto, como noutras urbes europeias.
Dentro, um menino tem a cara do ditador nazi Adolf Hitler, em "Him" (2001), de joelhos a rezar a um altar repleto de pombos, um de vários "fantasmas" colocados ao longo da instalação completa, um convite a uma "epifania negativa" sobre o perigo de voltarmos, hoje, a tempos mais negros.
Há ainda um elefante na sala, "Not Afraid of Love" (2000), coberto de um manto branco que lembra o Ku Klux Klan, e um mecânico menino do tambor impõe-se, pelo som que gradualmente emite ao tocá-lo.
"Sei que querem que fale de uma banana, mas não há bananas nesta exposição", ironiza Vergne, encaminhando-se para a sala onde a mais icónica das obras do italiano está exibida, em baixa luz.
Porque "é um comediante", como o título da obra, e não uma banana, como o cachimbo não o é para o célebre quadro de René Magritte, esta sala dedica-se ao 'meme', à força de uma criação de 2019 que "ainda é falada hoje".
Em novembro de 2024, um dos exemplares de "Comedian", aqui com uma banana comprada num qualquer supermercado próximo de Serralves, foi vendido em leilão em Nova Iorque por 6,2 milhões de dólares (5,9 milhões de euros) a um empresário de criptomoedas.
Desde que foi exibida pela primeira vez em 2019 no contexto de uma feira de arte, e vendida por cerca de 120.000 dólares, "Comedian" transformou-se num acontecimento global que teve um enorme impacto "na consciência cultural contemporânea", referiu a leiloeira Sotheby's em comunicado, na altura.
O artista não recebeu qualquer valor da venda em leilão, porque quem a colocou para venda era um colecionador e não o próprio, depois de pagar 35 cêntimos de dólar pela banana 'original', a Shah Alam, vendedor instalado perto da Sotheby's nova-iorquina.
"Ninguém fala da fita-cola", brinca Vergne, que fez os possíveis para falar o menos possível, ou recorrendo à ironia na maior parte dos casos, da mais badalada das criações na mostra, destacando outros trabalhos, apesar da insistência dos jornalistas.
"Sunday" data do ano passado e ocupa uma parede com painéis de aço banhado a ouro cravado de balas e os nove cadáveres cobertos de branco, uma das mais recentes do artista -- "um ornamento de desespero, um ornamento de violência", em diálogo com a Arte Povera italiana dos anos 1960 e 1970, de frente para nove cadáveres cobertos de pano branco, "All" (2007), sobre o 11 de setembro de 2001.
"Daddy daddy" (2008), o Pinóquio 'afogado' no lago de Serralves, de cabeça para baixo, comprova, para o diretor, que "se mentes, morres, é assim que se joga o jogo hoje em dia", e funciona como uma súmula da visão 'meta' da exposição -- uma personagem criada por Cattelan, como Geppetto que criou o menino de madeira, replica os temas fortes de mentira, suicídio, política, personagem e teatro que marcam o resto da mostra.
Além da exposição, patente até janeiro, Serralves lança desde já uma publicação a ela dedicada, que conta com um ensaio visual do artista italiano e textos de Philippe Vergne, Bernard Blistène e Cecília Alemani.
A curadoria da exposição - que no parque conta ainda com um gigante dedo do meio mostrado ao parque, depois de estar virado para a Bolsa de Milão - é de Vergne, com coordenação de Giovana Gabriel e apoio da Galeria Perrotin e da Galeria Gagosian.
Nascido em Pádua em 1960, Maurizio Cattelan, artista autodidata, ficou conhecido pelo estilo provocatório e satírico na abordagem à criação artística, marcada por esculturas e instalações hiper-realistas que lhe deram fama de 'gozão', ganhando reconhecimento desde o final do século XX, passando por uma exposição retrospetiva em 2011, no Guggenheim de Nova Iorque, e o caso viral de "Comedian", em 2019.
"Lembro-me de caminhar em Nova Iorque, perguntei a Cattelan o que estava a ler, e ele respondeu-me: 'Uma biografia de Napoleão'. Comecei a entender como se relacionava com a História. Sei como ele é percecionado e quem é no mundo da arte. Há uma perceção que ele criou, que serve quase como refúgio, e a [perceção] das pessoas a ver o seu trabalho", afirma Philippe Vergne.
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